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  • Kleber Del-Claro

Uma breve história do estudo do Comportamento Animal


Nosso interesse pelos animais está enraizado em nossas origens. Arte, pintura ou gravura rupestre é o nome que se dá às mais antigas representações pictóricas conhecidas . Mais de 40.000 a.C., milhares dessas gravuras rupestres foram gravadas nas paredes ou nos tetos de cavernas ou abrigos da África, Ásia, Europa e Américas. Na caverna espanhola de Altamira, também conhecida como “Capela Sistina da Pré-história”, a pintura rupestre de um bisão impressiona pelo tamanho e pelo volume conseguido com o uso da técnica do claro-escuro. Em diversas outras cavernas espalhadas pelo mundo todo, há inúmeras outras pinturas de animais, inclusive de alguns flechados ou encurralados por humanos. Essas gravuras rupestres representam os primeiros registros do interesse humano pelo comportamento animal.

Cerca de 4.000 a.C., os egípcios usavam as fibras do caule de uma planta chamada Cyperus papyrus para confeccionar o precursor do papel. Essa planta era esmagada, prensada e secada para dar origem ao papiro, que era usado para documentar negócios do Estado, em grande parte, relacionados com a comercialização de animais. Nos documentos antigos das mais diversas religiões, há inúmeros relatos sobre o comportamento e características de animais domésticos e selvagens. Esse interesse pelos animais e seu comportamento pode ser, em grande parte, explicado também pela zoolatria, isto é, adoração aos animais, que era comum à grande maioria das religiões politeístas. Os próprios egípcios tinham um vasto panteão de divindades antropozoomórficas, ou seja, parcialmente humanas, parcialmente animais.

Assim, se você pensa que foi um pioneiro, ao observar um pardal no seu quintal, está muito enganado. Nós, humanos, observamos o comportamento animal desde que surgimos. Mas uma coisa não mudou desde o princípio e, provavelmente, é a grande razão de nosso enorme desenvolvimento científico e intelectual. Observamos o comportamento dos animais para saber como, quando e do que podemos nos alimentar; para domesticar os animais; para evitar a ação de predadores; para aprendizado; mas, principalmente, por curiosidade. A curiosidade é uma característica peculiar que ressalta a inteligência humana. Em sendo curioso sobre tudo a sua volta e, em especial, sobre a natureza, o homem se tornou o ser dominante que hoje é.

A tradição oral, ou seja, a transmisão do conhecimento de uma geração a outra através da fala, contação de histórias, lendas e músicas, foi durante muito tempo o principal modo de perpetuação do conhecimento adquirido a partir da observação animal para o grande público. Este modo simples de transmisão do conhecimento, foi muito útil e eficaz, principalmente se considerarmos que, ainda hoje, grande parte da população mundial é analfabeta ou tem pouco domínio da leitura. A partir do século XVI, com as grandes navegações e a descoberta das rotas marítmas para África e Ásia, assim como a redescoberta do Novo Mundo, o ser humano passou a experimentar uma explosão de informações sobre a vida e o comportamento animal. Médicos e pintores de bordo, missionários, cartógrafos e um, pouco mais tarde, os primeiros naturalistas, passaram a descrever, primeiramente em suas cartas e depois em livros e artigos científicos, o comportamento de espécies nunca antes vistas. Um dos documentos mais preciosos desse período data de 1526 e foi escrito por Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés, intitulado Sumario de la Natural Historia de las Indias. Enviado ao Novo Mundo pelo rei Fernando da Espanha, Valdés fez a primeira descrição elaborada, rica em exemplos e detalhes específicos da flora e fauna da América Espanhola, principalmente da região do México. O documento continha não apenas a descrição de comportamento animal, mas também humano, o que atraía muito a atenção do público europeu ávido em conhecer as novas terras, sua gente, seus costumes, novos alimentos e possíveis medicamentos.

Ao longo dos dois séculos seguintes, inúmeras outras contribuições foram sendo feitas ao estudo do comportamento animal, mas de forma pontual e anedótica. Até que, entre o final do século XVIII e início do século XIX, os cientistas viajantes, denominados naturalistas, principalmente ingleses, alemães, holandeses, franceses e já alguns americanos, começaram a divulgar os resultados de suas expedições pelo mundo afora. Dentre eles, destacou-se o inglês Charles Robert Darwin, que publicou uma série de artigos e livros, como seus volumes de Zoologia, dentre os quais podemos citar extensas monografias sobre a biologia e taxonomia de cracas vivas e fósseis. Em 1859, Darwin publicou seu mais famoso livro: A Origem das Espécies, estabelecendo um dos mais importantes pilares no estudo da ecologia comportamental até os dias atuais, o conceito da evolução por meio da Teoria da Seleção Natural. Em 1871, Darwin publicou A Descendência do Homem, que, embora não fosse um livro especificamente sobre comportamento, estabeleceu importantes bases para as futuras discussões que viriam nos anos seguintes sobre a origem do homem e das similaridades entre comportamentos sociais de humanos e outros primatas. Porém, em 1873, mais uma vez, Darwin ousou ao publicar A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, talvez inaugurando o que, mais tarde, viria a ser a Psicologia Comparada.

O comportamento animal e humano, também conhecido como Etologia – do grego ethos, que significa “costume”, “hábito” – é uma área do conhecimento multidisciplinar, pois envolve aspectos da biologia desenvolvimental dos organismos, fisiologia, genética, evolução, psicologia e também da sua zoologia e ecologia. O termo etologia apareceu na França, no século XVIII, para designar a descrição de estilos de vida, em muito se confundindo com nossa definição atual de nicho ecológico. No sentido de se referir especificamente ao estudo do comportamento animal, o termo etologia foi empregado pela primeira vez no século XX, mais precisamente em 1950, pelo holandês Niko Timbergen. Devido aos trabalhos pioneiros no estudo do comportamento em condições naturais, com atenção voltada para padrões espécie-específicos de comportamentos, o alemão Oskar Heinroth e o americano Charles Whitman são também apontados por muitos como cofundadores da etologia moderna.

Depois de um longo início descritivo, seguindo a tradição de história natural empregada à etologia pelos naturalistas do século XIX, o estudo do comportamento ingressou em uma nova fase, mais experimental, buscando entender as causas evolutivas dos comportamentos. Do meio da década de 1950 até o final dos anos 60, três pesquisadores europeus se destacaram nesta nova abordagem: os austríacos Konrad Zacharias Lorenz e Karl von Frish, e o holandês Niko Timbergen. Em conjunto, por “seus estudos voltados para a compreensão da organização e elicitação dos comportamentos individuais e sociais”, em 1973, esses cientistas receberam o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, inaugurando uma nova era na etologia, que nos levaria à ecologia comportamental.

Em uma definição clássica, o comportamento animal em seu sensu stricto, inicialmente, apresentou três grandes áreas:

a) Psicologia Comparada – Inicialmente centrada nos Estados Unidos da América, esta é a área mais descritiva e que dá pouca importância às causas evolutivas dos comportamentos. O foco é o aprendizado associativo, especialmente em humanos. Nesses estudos, é comum o uso de animais como cães, pombos e ratos, como modelos experimentais, visando entender os processos cognitivos e perceptuais em humanos.

b) Neurobiologia – A partir de uma base biológica, esta abordagem voltou-se, durante muito tempo, para o entendimento dos mecanismos de funcionamento do sistema nervoso e suas respostas comportamentais, em detrimento de considerações evolucionárias. Atualmente, apresenta linhas com interesse filogenético, buscando entender as origens da formação e funcionamentos dos sistemas neurais e suas respostas comportamentais. É um dos campos mais promissores, no que se refere aos estudos do comportamento humano, no século XXI.

c) Etologia – O estudo descritivo do comportamento animal caracteriza a etologia clássica, que abordava principalmente as bases fisiológicas dos comportamentos, incluindo os mecanismos causais e funcionais, deixando para segundo plano as bases evolutivas (funções adaptativas) dos comportamentos.

Devido à formação acadêmica dos primeiros estudiosos do comportamento, a etologia no século XX se desenvolveu inicialmente na Psicologia. Durante muito tempo, esses primeiros etólogos contemporâneos se preocuparam com padrões estereotipados de comportamentos, os também chamados padrões fixos de ação (PFA).

Um PFA é todo e qualquer comportamento que pode ser elicitado por um estímulo sempre muito característico, denominado estímulo sinal ou liberador. Por exemplo, no ninho, quando um filhote de ave abre seu bico, exibindo para a mãe as cores fortes de sua mucosa (amarela, laranja ou vermelha), faz com que esta regurgite o alimento para ele. Com o passar do tempo e a descoberta de que a maioria dos comportamentos não são de fato tão esteriotipados quanto se propunha no início da etologia moderna, os PFAs foram recentemente renomeados como padrões modais de ação (PMA).

Paralelamente a esses estudos, outros psicólogos direcionavam seus trabalhos para a investigação de atos comportamentais que pudessem ser claramente quantificados, dando origem a estudos sobre aprendizado e sobre as bases fisiológicas dos comportamentos. Nesta linha, um fisiologista russo, Ivan Pavlov, trabalhando principalmente com cães e estudando sua capacidade de adestramento para a execução de pequenas tarefas, desenvolveu a ideia de condicionamento clássico, ou seja, condicionar um animal a desempenhar uma determinada função.

A metodologia desenvolvida por Pavlov, criou as bases para que uma nova escola da psicologia fosse inaugurada, o Behaviorismo. Um dos mais importantes nomes nessa nova linha de pesquisa foi o americano Burrhus Frederic Skinner, que propôs que o estudo do comportamento animal fosse limitado às ações que pudessem efetivamente ser observadas. Skinner demonstrou que padrões de comportamento que pudessem ser recompensados, tenderiam a ser reforçados e aumentariam em frequência. Os clássicos exemplos – e os mais lembrados – são as caixas de Skinner, gaiolas contendo ratinhos que utilizam as patas dianteiras para abaixar uma barra, fazendo com que um grão de ração ou uma gota d’água (recompensa) seja liberada a sua frente. Os experimentos de Skinner mostraram que o controle do comportamento pode ser muito influenciado por ação reforçada.

Entre o final da década de 1960 e o início dos anos 70, William D. Hamilton deu uma abordagem totalmente nova à etologia. Apoiado nas ideias de manipulação experimental (e.g. alteração de uma característica do ambiente para se testar a função de um ato comportamental) inicialmente propostas nos estudos de Tinbergen, von Frish e Lorenz, este biólogo evolucionista britânico propôs, pela primeira vez, que os comportamentos exibidos pelos animais deveriam ser estudados no sentido de entendermos seu real impacto sobre o valor adaptativo das espécies, traduzido pela sobrevivência desses animais e de seus parentes. Assim, Hamilton propunha a aplicação da seleção natural como ferramenta para entendermos as bases genéticas que moldavam os comportamentos. De suas ideias e das do entomologista e biólogo americano Edward Osborne Wilson, emergiu uma nova ciência, a Sociobiologia, que busca entender as bases evolutivas da existência e a perpetuação dos comportamentos sociais.

No somatório desses esforços, o que, de fato, se via nascer era um novo modo de se estudar e entender o comportamento animal. Esse novo modo era um resgate e um aperfeiçoamento do método hipotético-dedutivo (a ser detalhado, mais à frente), inicialmente empregado pelos darwinistas, apoiado na ideia de seleção natural, revigorada pelos conhecimentos modernos da genética e da evolução. Através da manipulação experimental e também do uso de ferramentas estatísticas e matemáticas, procurava-se entender não somente como um animal exibia um determinado comportamento, mas principalmente quais seriam as causas evolutivas que mantinham esse comportamento vivo, em termos de alelos presentes em uma população, ou seja, o valor adaptativo dos comportamentos. Assim, o Comportamento Animal se transformava em Ecologia Comportamental.

Hamilton desenvolveu parte de seus estudos no Brasil, em discussões com o agrônomo e geneticista brasileiro Warwick Estevan Kerr. Através de seus estudos com abelhas sociais, Hamilton conseguiu demonstrar que o valor adaptativo de um comportamento pode ser medido pela quantidade de prole (filhos) viável, com chance de sucesso reprodutivo futuro e que o comportamento permite que o indivíduo que o exibe produza ao longo de sua vida. Deste ponto em diante, as portas do estudo do comportamento animal foram gradualmente arrombadas pelos ecólogos, que passaram a tentar entender não apenas como um determinado comportamento influía na sobrevivência e reprodução de um indivíduo, mas também os reflexos disso sobre as populações desses consumidores (herbívoros e carnívoros). E mais: o que isso representa em termos de impacto sobre os produtores (plantas), sobre as interações ecológicas e sobre a estrutura das comunidades.

Hoje, o Comportamento Animal, mais do que uma linha de investigação científica, transformou-se em uma das mais poderosas ferramentas no universo multidisciplinar da ecologia comportamental. Nos nossos dias, uma grande profusão de cientistas se dedica ao estudo da ecologia comportamental, em maior ou menor escala. Eles estão espalhados pelo mundo todo – homens e mulheres, alguns mais velhos outros mais jovens, como você!

Seria um absurdo querer listar aqui a ordem de importância do estudo desses colegas e de suas contribuições. Nesse novo e tão dinâmico universo, o nome do americano John Alcock1 merece destaque. Sua publicação, Comportamento Animal: Uma Perspeciva Evolutiva, hoje na oitava edição, talvez seja a obra contemporânea que mais influenciou o desenvolvimento do estudo do comportamento animal, nas últimas duas décadas, entre jovens biólogos e ecólogos. Entre o final do século XX e o início do século XXI, o surgimento da internet, dos PDFs eletrônicos (Portable Document Format), têm disseminado, de forma cada vez mais rápida e em maior quantidade, os estudos publicados em todas as áreas do conhecimento. Não apenas textos, mas fotos e filmes sobre comportamento são hoje veiculados por famosos e anônimos, na tentativa de divulgar suas descobertas. Seja, portanto, cauteloso, prudente e criterioso em suas pesquisas na internet, pois quantidade nem sempre é sinônimo de qualidade.

Ernest Mary definiu ciência como sendo “um pequeno passo no esforço humano para entender melhor o mundo por observação, comparação, experimentação, análise, síntese e contextualização”. Se, nesse sentido, a Biologia é uma ciência única, pois é mutável e se adapta às transformações impostas pelo tempo, a Ecologia Comportamental pode ser considerada uma das filhas rebeldes da Biologia – aquela xereta que entra em toda festa, e que, sem cerimônia nenhuma, põe o dedo no glacê do bolo. O ecólogo comportamental de hoje equivale ao naturalista do século XIX, porém revestido de todo o conhecimento acumulado pela Biologia, nos últimos dois séculos, da genética à ecologia, passando pela fisiologia, zoologia e botânica. Hoje, ele utiliza os mais modernos equipamentos eletrônicos para documentação e análise, incluindo aí tudo que é pacote estatístico, mas... sem dispensar uma boa cadernetinha, lápis e borracha, além de uma confortável roupa de campo e um boné.

Kleber Del-Claro

Introdução à

ECOLOGIA COMPORTAMENTAL

um guia para o estudo do comportamento animal

Kleber Del-Claro

Technical Books Editora

2010


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